ARTIGO: A Romaria da Santa Cruz do Deserto no Caldeirão

Por Padre Vileci Basílio Vidal  - Assessor das CEBs
                                                                                                     
A romaria das comunidades no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto teve início em setembro do ano 2000, organizada pela Pastoral da Terra da Diocese de Crato, por ocasião da passagem do século XX para o século XXI. Nesta primeira romaria participaram menos de 200 pessoas. Nos anos seguintes, cresceu bastante o número de romeiros e romeiras que vão ao Caldeirão no terceiro domingo de setembro para lembrar as vítimas do massacre que destruiu a comunidade. Somam mais 3.000 romeiros que a cada ano participam da Missa da Santa Cruz do Deserto. Esta celebração já faz parte do calendário das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Diocese de Crato. A romaria ganhou mais proporção em 2002 quando, pela primeira vez, o bispo Dom Fernando, participou da romaria e batizou o Caldeirão de “Santuário das Comunidades”.
O objetivo da romaria é resgatar a história da comunidade do Caldeirão do beato Zé Lourenço. E isso tem sido bastante gratificante para a caminhada das CEBs que vê no Caldeirão um legado para a organização do luta pela convivência com o semiárido. Criou-se, então, a semana do “Ecos do Caldeirão”: acontece com atividades nas escolas e comunidades através de palestras, exposição de fotografias e entrevistas na semana da romaria.
            A romaria tem ajudado a tornar mais visível a história de luta dos camponeses no Cariri como atores sócio-políticos da sociedade civil, transformados em novos sujeitos de poder, impulsionadores de inovação e mudanças no meio em que vive, tendo como fundamento a cultura de resistência. Ainda se encontra muitos grupos organizados pela dança e pelo canto: reisados, minero-pau, penitentes, dança do coco, lapinha, banda cabaçal, bacamarteiros, dança de São Gonçalo, orucongo, além das brincadeiras de roda e quadrilhas.  Esse processo de inovação e mudança no semiárido é resultado de reações contrárias às políticas sociais públicas excludentes, que promoviam uma modernização conservadora na qual a inclusão deixou de ser direito dos camponeses e a pobreza os fez “retirantes da seca”. O mapeamento destas ações presente nas comunidades da região do Cariri fez surgir o Projeto ECOS do Caldeirão, tendo em vista a sociedade do Bem Viver com base na história do Caldeirão do Beato Zé Lourenço e o fortalecimento de comunidades ecológicas e sustentável: produção local e orgânica de alimentos; utilização de sistemas de energias renováveis; uso de material de baixo impacto ambiental; criação de esquemas de apoio social e familiar; diversidade cultural; vivência da espiritualidade libertadora; economia solidária; sistema de saúde integral e preventivo; preservação e manejo de ecossistemas locais. A perspectiva do projeto é fortalecer as Comunidades Eclesiais de Base.
O projeto é fruto dos 15 anos de romaria que busca na experiência exitosa do Caldeirão, a força mística da comunidade que tinha como lema: trabalho, oração e abundância. São lugares místicos, como o Caldeirão, que dão vida e se tornam espaço sagrado, propício para oração na peregrinação dos povos. Por ser um lugar místico e de convivência com o semiárido, o Caldeirão transformou-se em lugar de romaria das CEBs que acontece com a partilha de alimento entre os romeiros e manifestações culturais. As comunidades se organizam em caravanas e cavalgadas para juntas celebrarem a festa da Santa Cruz do Deserto.
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                               Mística dos camponeses

Nas comunidades camponesas de resistências – Canudos, Contestado e Caldeirão, a religião proporcionava a mística da luta pela libertação social, assim como o cristianismo entre os primórdios. Entende-se a palavra “mística”, de origem religiosa, como sinalização da dimensão espiritual e ética do socialismo, a fé no combate revolucionário, o compromisso total pela causa emancipadora dessas comunidades, disposição heroica para arriscar a própria vida. Compreende-se, então, que a força dos revolucionários não resiste na sua ciência e sim na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual.
            Frente a estas considerações, Rui Facó, no seu livro Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964, pág. 44), destaca que, em 1903, havia um jornalista perspicaz e conhecedor profundo do Cariri o qual aconselhava o Governo a mandar proibir os ajuntamentos de camponeses abrasados e famintos que se faziam pelos sertões. O perigo consistia em, uma vez juntos, excitar-lhes o ânimo sobre qualquer pretexto, quebrando assim a “ordem natural” gerada pelo latifúndio semifeudalista. “Por isso, toda tentativa de arregimentação das populações rurais sempre foi brutalmente combatida, a ferro e fogo, pelos dominadores, fosse na Colônia, no Império ou na República”. E isso termina se confirmando na comunidade do Caldeirão liderada pelo Beato José Lourenço, nas terras do Pe. Cícero, no município de Crato entre 1926 e 1937, onde aconteceu a primeira chacina do Brasil por meio de bombardeamento no dia 11 de maio de 1937, quarenta anos depois do massacre de Canudos. Na época, Caldeirão era visto como um “Novo Canudos”, por isso o Governo Republicano, Getúlio Vargas, mandou destruir a comunidade; pois, qualquer ajuntamento de trabalhadores rurais que tivesse semelhança com Canudos era acusado como foco de “comunistas rebeldes”.
Frente ao enfrentamento das secas, os camponeses tinham como instrumento de luta pela libertação social a religião. Juazeiro torna-se um novo referencial para os retirantes da seca. Pois, “o milagre da hóstia” em Juazeiro, tido como extraordinário e que havia repetido em muitas outras ocasiões semelhantes, não está isolado dos “movimentos rebeldes” dos camponeses. A massa de camponeses, romeiros, que se fixou em Juazeiro, por conta do episódio do milagre, buscava trabalho em obras religiosas e em tarefas rurais de fazendeiros da região, aos quais eram encaminhados por Padre Cícero. Mas, aglomerados de romeiros formaram comunidades camponesas em terras do Padre Cícero e na Serra do Araripe: Baixa Grande no município de Santana do Cariri, Serrinha e Monte-Serrá em Caririaçu, Cacimbas em Jardim e Caldeirão da Santa Cruz do Deserto em Crato. Cada uma dessas comunidades era orientada por beatos.
            Nesta nova organização estabelecida pelo Padre Cícero, em pequenas comunidades rurais, o sentimento místico religioso do socialismo prevalece e surgem as experiências camponesas de “comunitarismo popular” com aglomerados de pessoas que tem como principal atração a religião popular. Na região do Cariri, começou a manifestar-se em 1891 e 1892 em Juazeiro do Norte com o Pe. Cícero Romão Batista e depois se estendendo pelos sertões através dos beatos e beatas. A classe dos trabalhadores rurais organizava sua vida religiosa de modo particular, elaborando seu ritual em torno dos símbolos: festas de padroeiros, romarias, procissões, culto aos mortos etc.
            E, numa época em que a Igreja Católica passava longe do povo, levas e levas de miseráveis corriam para Juazeiro arrastados pela fé e o assistencialismo religioso do sacerdote Pe. Cícero. A família do beato Zé Lourenço fazia parte dessa massa de desamparados e migra de Pilões de Dentro, na Paraíba, para o Cariri no final da década de 80 do século XIX. Nesta época muitos nordestinos começam a migrar para Juazeiro quando tomara conhecimento do “milagre da hóstia” transformada em sangue na boca da beata Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo.  E José Lourenço chega a Juazeiro em 1890, bem depois de seus pais. Lá, tornou-se discípulo do mestre Pe. Cícero. Entrou para uma ordem de penitentes[1] tornando-se beato.
            Numa época de grandes secas, em que os retirantes não eram bem vindos aos centros urbanos, Juazeiro torna-se lugar de refugiados, lugar santo por acolher os retirantes  da seca que encontram lá um espaço para morrer em paz, devido os penitentes fazer um trabalho religioso e assistencial, tratando com dignidade as vítimas da fome e do desprezo da burguesia nordestina que não tinha o mínimo de sensibilidade com esses pobres camponeses.
            Entre os anos de 1894 e 1895, José Lourenço foi morar com sua família e alguns romeiros no sítio Baixa Dantas, numa terra arrendada pelo Pe. Cícero ao Coronel João de Brito, no Município de Crato, onde ficou com seu povo até 1926. Lá, conseguiu produzir muito, mas o proprietário pede o sítio de volta e resulta na venda do Sítio Baixa Dantas (1926) e José Lourenço, com seu povo, seguiram para um sitio no pé da Chapada do Araripe, na época conhecido por Caldeirão dos Jesuítas, onde continua o protagonismo dos camponeses. Essa comunidade organizada pelo beato José Lourenço é marcada pelas mesmas características do modelo de produção e pela mesma mística da religiosidade popular presentes na comunidade de Canudos na Bahia.

2              Convivência com o semiárido

O Caldeirão, conhecido também como Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, nome que levava a irmandade, ficava nas terras de herança do Pe. Cícero no município de Crato. A área do Caldeirão era 900 hectares, localizada numa região semiárida do Cariri, formada por vegetação pequena típica do bioma Caatinga, solo nu e pobre em nutrientes, topografia acidentada e com vários grotões. O nome Caldeirão deriva de formações rochosas na parte mais baixa da área, em forma de grandes reservatórios que acumulam água quando chove. A sua história nos inspira na discussão sobre a convivência com o semiárido, considerando que se trata de uma experiência em uma época de extrema miséria no campo, devido à impossibilidade que tinham os camponeses de acesso a terra e perpetuava no sertão nordestino a super exploração, a miséria e a fome. Mas, na comunidade do Caldeirão se estabelece uma verdadeira agrovila, com centenas de casas, dois açudes, engenho de rapadura, casa de farinha, armazém para estocar alimentos, oficinas de marcenaria, ferreiro, aviamento de couro, barro e cerâmica, grande variedade de frutas, cultivo de cereais, criação de bois, porcos, cabras, galinhas, animais de estimação domésticos (cães e gatos) e selvagens domesticados (emas, mocós, papagaios).
Em 1926, a população inicial do Caldeirão era entre 200 a 300 pessoas e teve um aumento considerável com a seca de 1932 quando as pessoas procuravam a comunidade para não morrer de fome[2]. Antes da primeira invasão, em setembro de 1936, dois anos depois da morte de Pe. Cícero, a população do Caldeirão havia se tornado um povoado de mais de 400 casas e abrigava quase 5.000 habitantes (In: Jornal O POVO, 30/09/1936, Leilão dos Bens do Beato). Mas a fartura da comunidade era tanta que, durante a seca de 1932, uma das muitas terríveis que abateu o Nordeste, centenas de desvalidos correram para lá. Foram recebidos com comida, trabalho e orações pelo beato. Naquele momento, os fieis dominavam até mesmo técnicas primárias de irrigação, o que permitiam multiplicar a fartura da irmandade de Santa Cruz do Deserto.
            Os destinatários da comunidade que se faziam protagonistas eram os romeiros mais desvalidos, os fugitivos de perseguições, os retirantes da seca, aqueles que precisavam ser reeducados no trabalho e que chegavam a Juazeiro sem perspectivas e o Pe. Cícero destinava para morar com o beato José Lourenço no Caldeirão.
Tanto Canudos como Caldeirão, expressa vantajosas experiências camponesas com o semiárido onde tudo era de todos: se produzia muito e se armazenava. Todos trabalhavam em mutirão, comiam-se junto, os trabalhos eram divididos por tarefas segundo a aptidão de cada um. Enquanto um grupo de mulheres preparava a refeição, uns trabalhavam na roça, outros pastoreavam o gado e se trabalhavam nas oficinas de carpinteiro, ferreiro, sapateiro, louceiro, costureira, ourives, seleiro e santeiro. E assim havia ocupação para homens e mulheres que também se ocupavam de outras tarefas como fiar, tecer e confeccionar roupas.
Acontecia muita festa no tempo da moagem e farinhadas. Trabalhava-se com alegria. Na comunidade do Caldeirão as festas e celebrações religiosas alimentava a fé e fortalecia a mística do compromisso. A comunidade era organizada pelo tripé: trabalho, oração e abundancia. O alimento era o de mais sagrado que podia existir, por isso servia tanto para alimentar o corpo como para alimentar a alma. Ali havia fartura, o que se colhia não era transformado em mercadoria. A referência dada pelos remanescentes ao Caldeirão é de que “lá era lugar de abundancia e tinha tudo que se precisava”. O que se vendia, com o dinheiro se compravam café, sal, soda cáustica, medicamento e tecido, além de objetos preciosos. “Mas lá era só de rezar e comer muito e trabalhar muito. Ninguém tinha tempo de tá desempregado aí, no mundo. Era para trabalhar, comer e rezar” (M.C./f/reman./jan. - 2000). O trabalho era voluntário, as pessoas eram livres para escolher aquele estilo de vida, mas não eram livres para explorar os outros, viver a custa “do suor” dos outros.
A romaria que se realiza a cada ano é a busca dessa mística vivida no Caldeirão, para fortalecer a fé do povo das Comunidades Eclesiais de Base e os movimentos sociais que lutam pelo Bem Viver na convivência com o semiárido, através dos projetos que vão se espalhando pelo Território do Cariri, criando a Teia da Sustentabilidade. 


[1] Os penitentes praticam a autoflagelação em rituais de purificação do espírito. “As ordens de penitentes fazem um trabalho religioso leigo de ‘cuidar’ dos mortos. Rezam nos cemitérios, nas cruzes dos caminhos, fazem ‘sentinelas’ em velórios e acompanhamentos de enterro, cantando benditos, ladainhas e ‘incelênças”. As tradições resistiram à chegada da pós-modernidade e ainda hoje se fazem presentes nas comunidades do sítio Cabeceiras de Barbalha, distrito do Genezaré em Assaré e nos municípios de Juazeiro do Norte, Várzea Alegre, Lavras da Mangabeira e Porteiras.
[2]Em 1932 foram criados sete campos de concentração espalhados por todo território do Ceará: Crato, Cariús, Quixeramobim, Ipú e Senador Pompeu, além de dois pequenos campos em Fortaleza, foram os locais escolhidos, cobrindo as principais rotas de migração do Estado... Os campos concentravam milhares de retirantes, chegando a um total de cerca de 90.000 em janeiro de1933. O campo de Crato era o que tinha maior número de “habitantes”.

Padre Vileci Basílio Vidal é assessor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e membro da CPT diocesana do Crato.

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